"Vocês da Zona Leste são tão fáceis"
Também já fui uma boba da corte, mas pode chamar de otária
Já sabemos que, tirando sarro de si próprios ou não, Édouard Louis, Annie Ernaux e Tati Bernardi conseguiram escalar com sucesso a pirâmide social por meio da escrita. Aqui do meu lado, vivo ainda tropeçando entre os níveis hierárquicos de outra pirâmide, a de Maslow. Deste lugar, a luta ainda é pra garantir os ifoods da semana, manter a delícia perigosa do home office sem 13º, mas com direito a férias remuneradas, uma viagem internacional por ano, uma frequência sexual saudável e algumas amizades.
Num outro patamar, busco aumentar a autoconfiança já abalada pelos efeitos da perimenopausa e, lá no topo, investir nas coisas que me acendem por dentro e me mantêm desejante, tudo pra continuar fazendo a roda girar, é claro. Mas não posso reclamar: as coisas estão fluindo razoavelmente bem aqui na minha casta. Não me interessa tentar fazer parte de um clube que nunca vai me aceitar como sócia.
Não quero, com isso, dizer ao universo que o dinheiro não seja bem-vindo, ou que não me esforce para ser cada vez mais culta. Inclusive, alô, universo: manda fartura e sabedoria pra cá (eu disse faRtura, não fatura, hein?)! Mas uma das coisas que prometo não fazer em retribuição é fingir ser o que eu não sou pra tentar agradar os outros. Não mais.
Porque é claro que nem sempre foi assim, né, gente? Eu trabalho desde muito cedo. Em determinadas fases da vida circulei em outras rodas e também quis muito fazer parte daquele mundinho muito rico, meio intelectual, meio de esquerda.
E ao ler os livros do querido trio de alpinistas citado acima, obviamente me identifiquei mais com o da Tati - A Boba da Corte -, por ser uma publicitária que, apesar de ter nascido na ZL, teve esses mesmos acessos: povo de agência, gente que estudou naquelas escolas que ela sempre cita, uns meio artistas, outros sem precisar muito definir a que vieram.
Juvenil e inocente, achava que dizer que morava na Mooca me deixaria em melhores lençóis do que assumir que era da Vila Prudente, um bairro até então conhecido apenas pela grande favela (na época não chamava comunidade e nem tinha metrô da Linha Verde, a mesma que passa na Paulista). Mal sabia eu que isso pouco importava para essas pessoas. Quer dizer, importava muito, mas eles jamais saberiam diferenciar, nunca pisariam por aquelas bandas.
Ao contrário da Tati, porém, nunca fui a riquinha do bairro, embora eu não percebesse muito isso na época. Era branca, magra, loira, tinha sobrenome importado e uma família que sempre viveu num padrão muito além de suas possibilidades. Eu não sentia, apesar de a nossa primeira casa alagar e a segunda ter levado 13 anos pra ser construída. Mas a gente era classe C mesmo e olhe lá. Talvez seja por isso que, mesmo tendo saído da ZL há muito tempo e morado nos bairros mais nobres da cidade, eu ainda não cheguei lá - seja lá aonde for lá (mas se “lá” for Higienópolis, eu passo).
No início do século, eu namorava um artista almost famous que, para os meus padrões, parecia ter muito dinheiro. Pouco importou ele confessar, muito secretamente, que sua família estava falida. Morando num duplex em bairro badaladíssimo e com o pai sendo um megaempresário, era impossível acreditar nisso. E não fazia a menor diferença pra mim: ele sabia dançar e eu adorava ser musa inspiradora. Porém, o tempo foi passando e cenas como estas passaram a ser comuns:
"Faz o sotaque da Mooca pra gente, vai?!"
Eu provavelmente tinha aquele sotaque bem característico do bairro italiano, afinal nunca tinha morado em outra região na vida. Lembro da mãe dele com o olhar de deboche que eu era incapaz de identificar claramente, pedindo: "ah, fala vai?". Eu improvisava, meio sem jeito, algum "ô lôco, meu!", ou qualquer coisa que qualquer pessoa que passasse pela sala da família brasileira num domingo à tarde saberia fazer tranquilamente. Lembro de me sentir constrangida, meio boba da corte, quando isso acontecia.
"Como você pode ter mais seguidores do que eu se você não é... nada?"
Eu era uma simples blogueirinha com muitos views, quando isso significava escrever posts com relatos divertidos sobre a minha vida, sob a proteção de um pseudônimo. Enquanto ele era um promissor artista. Ele não se conformava!
"É. Legalzinha essa praia."
Até aquele momento, eu pouco tinha viajado na vida. Jamais havia saído do país. Floripa e Minas Gerais eram os lugares mais distantes que eu já havia pisado. Faz tempo... Um dia fizemos uma trilha até uma praia escondida, próxima à Guarda do Embaú em SC. O caminho era um espetáculo: um sobe e desce de morros mágicos com vistas magníficas, trilha bem light, passeio gostoso sabe? Tinha até coelhos correndo pelos bosques, umas casinhas de madeira perdidas, um verdadeiro sonho. Até que chegamos a uma linda microprainha deserta, só nós dois. Um visual perfeito, eu praticamente chorando por tanta beleza, cheia de hormônios, apaixonada. Nunca tinha visto algo tão lindo em toda a minha vida, ao que ele fala com a cara mais blasée do mundo: "É. Legalzinha essa praia... Agora vamo embora". Pensa num homem broxante. E mesmo hoje, tendo conhecido inúmeras praias no Brasil e no mundo, afirmo que aquela prainha não fica muito atrás de nenhuma de Noronha, por exemplo. Odeio gente desemocionada! Que eu nunca deixe de me maravilhar com as coisas, principalmente as mais simples da vida. Que eu saiba reverenciar a beleza.
“Vocês da Zona Leste são tão fáceis”.
Essa doeu muito. Estávamos, eu e esse namorado, no aniversário de um amigo meu. Esse amigo jogava uma partida de bilhar com uma garota que havia acabado de conhecer e, éramos jovens, a coisa era rápida. Mal piscamos os olhos e eles já estavam se beijando. Eis que o digníssimo solta essa pérola do título para mim, sem sequer saber de onde era a garota, me colocando no bloco das fáceis. Já estávamos no finzinho do relacionamento, podia ter acabado ali, mas engoli a humilhação. Um pensamento tão mamãe-falei, né? Nessas horas a gente pensa “como eu pude?!”.
"Você é deslumbrada!"
No meu blog eu tinha muitos seguidores e, é claro, alguns haters. Alguém com um perfil fake vira e mexe me atacava, me chamando de "deslumbrada". Entre tantos comentários fofos, é claro que esses eram os que mais me abalavam. Na época eu achava que era uma ex desse namorado, mas hoje, tenho pra mim que era ele mesmo. O cara não se contentava em me odiar presencialmente, então inventou um perfil fake pra me odiar online também.
Foram humilhaçõezinhas tolas que voltaram a acontecer em outros relacionamentos com homens dessa mesma estirpe, mas infelizmente não consigo vê-las com o humor da Tati. Também não tenho intenção de tirar sarro, nem de expor ninguém. Contei aqui, porque me lembrei disso tudo ao ler o livro dela. Eu não quero ser como eles, não faço questão dessas presenças na minha vida. Acho, de verdade, um bando de gente hipócrita, racista, classista. Nem todos, é claro, mas tem muita gente assim. Por mais que nos aceitem em seus meios, nunca será por inteiro. E eu quero mais é que eles tomem bem no meio de seus meios.
E acredite: quando parei de tentar ser aceita, conheci alguém que me aceitou exatamente como eu sou. Adivinha onde? Lá mesmo, na Vila Pru! Aquele sotaque ultramooquense – que eu nem me lembrava direito porque sou muito esponja pra sotaques e morei em muitos lugares, além de frequentar muito pouco a região – fez com que eu me sentisse mais em casa do que nunca. Era confortável demais estar do lado dele.
Ele não tinha a vida ganha, mas tava na luta. E topou ganhá-la comigo. Desde então, a gente vem conquistando nossos espaços, subindo a nossa montanha, degrau por degrau. Sem pular etapas. Sem precisar desmerecer ninguém. Porque, né? Que cafona fazer isso, credo.
<3
A princípio eu não havia entendido esse "fácil" aí... Acho que somos fáceis em tantos sentidos.. nesse da gente se deslumbrar com coisas simples e se deixar encantar pelos vários tons dos lugares que a gente anda. É fácil de encontrar alguém da leste em qualquer canto da cidade... Mas esse comentário aí foi dum preconceito que há tempos não encontra eco aqui.
Bom te ler, querida! Desde os tempos do blog.
Bj